Dois anos do desastre de Fundão: último dia de Seminário expõe a diversidade de grupos atingidos e os impactos diferenciados e imensuráveis

Hábitos, costumes, identidades: o desastre da Barragem de Fundão atingiu regiões e grupos sociais diversificados. Os impactos, que perduram até hoje de modo contundente, são sentidos de diferentes formas por cada um desses locais e povos. Vilas de pescadores, quilombos, tribos indígenas e áreas urbanizadas; todos sofrem, à sua maneira, com o desastre.

Este retrato de destruição e sofrimento dos atingidos pelo crime ambiental da Samarco, aliado à ineficiência da Fundação Renova, marcou ontem o segundo e último dia do Seminário “Balanço de Dois Anos da Barragem de Fundão”.  As terceira e quarta mesas de apresentações e debates abordaram a questão das dinâmicas territoriais, a atuação de corporações e as violações de direitos.

Realidades locais

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Foto:  Facebook do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

De acordo com o cacique Toninho dos Comboios, há dois anos sua tribo, que vivia dos mariscos, está impedida de pescar. “A gente é refém deste espaço. O desastre afetou nossa liberdade e lazer.”. O agravante, segundo ele, é que o Rio dos Comboios, que foi contaminado pelo Rio Doce e costuma encher em época de temporais, pode acabar morrendo por conta do vazamento do Doce e trazer contaminantes para a comunidade com as enchentes.

Outro grupo bastante atingido é a comunidade pesqueira de Maria Ortiz, em Colatina. Segundo Regiane Soares Rosa Lordes, que era pescadora até o crime ambiental da Samarco, ela teve que mudar bruscamente seus hábitos e costumes de uma hora pra outra devido ao desastre. “Moro a 100 metros do Rio. Tive que mudar meu modo de ser e de viver. O que a gente sente não tem preço. Todos os atingidos tem o mesmo sofrimento”, desabafou.

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Foto:  Facebook do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) – Ato de pescadores em Colatina, ES

Regiane, que integra o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), ainda ressalta a falta da dimensão dos impactos que o desastre causou e ainda pode causar. Alguns desses impactos, segundo ela, são os da saúde. “Há algumas doenças que podem surgir e jamais serão contabilizadas, como Alzheimer, as de pele, câncer, entre outras”.

Perda de identidade

De acordo com a Doutora Raquel Oliveira, professora e pesquisadora do GESTA (UFMG), Raquel Oliveira, o desastre do Rio Doce é algo que vai ficar marcado na vida dos atingidos por um tempo difícil de delimitar.  De acordo com ela, muitos moradores de povoados e cidades próximas ao Rio alegam perda de sentido da vida, já que o corpo d´água e tudo que ele representava deixaram de existir.

A pesquisadora menciona o relato de uma marisqueira de São Mateus, que requereu a sua identidade de volta. O caso desta mulher, segundo Raquel, é perda da face (como se vê) e do papel (na sociedade, na vida). Além disso, de acordo com a professora, há o processo de sujeição ao tempo e ritmo do outro, que, neste caso, é a dependência dos atingidos à Renova.

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Foto:  Facebook do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)

Violações de direitos humanos

Para o Procurador Federal Marlon Weichert, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF), há graves violações dos direitos humanos em todo esse processo do desastre. Ele cita o deslocamento forçado de pessoas que tiveram que sair de suas casas, a supressão de projetos de vida, a destruição de tecidos sociais e de modos de vida, entre outros casos.

Dr. Marlon enfatiza que é preciso tomar cuidado para que os atingidos não sejam tratados de maneira equivocada, de forma propositada pela Renova. Segundo ele, nomenclaturas como “beneficiadosnão devem ser aceitas, já que os atingidos são titulares de direitos.

“Os programas de reparação não são um favor, são um dever. Os atingidos são titulares de direitos, que devem ser integralmente reparados, e a Samarco, BHP e Vale são devedores. Devemos ter cuidado com estratégias de inversão dos polos de protagonismo deste processo. Isso é uma luta de princípios.”

Renova amplia e intensifica os impactos

De acordo com o Procurador Paulo Henrique Trazzi, apesar da diversidade de povos, dentre os vários traços comuns está o desserviço da Renova para com as comunidades atingidas. “Visitamos quase todas, em coordenação com as Defensorias (estadual e da União), e em todas há problemas em comum como cadastro dos atingidos, falta de transparência em relação aos critérios de reconhecimento de quem é atingido, entre outros”.

Não bastasse a ineficiência da Fundação Renova para reparar os impactos do crime ambiental cometido pela Samarco, suas ações sem transparência têm causado conflitos sociais graves, segundo o Procurador. Em várias comunidades, há pessoas nas mesmas condições de atingido que recebem auxílio emergencial  e outras não, sem qualquer motivo para essa diferenciação. Muitas acabam colocando a culpa no líder da comunidade por conta disso.

“O foco da renova não é o atingido. Só com o reconhecimento dos atingidos, conseguiremos achar soluções adequadas. Os atingidos devem ter voz efetiva, serem protagonistas, tanto no diagnóstico quanto nas soluções propostas”, enfatizou o Procurador.

Participantes

Compuseram a “Mesa 3” (balanço das dinâmicas territoriais) o Cacique Toninho dos Comboios (atingido dos Comboios, em Aracruz –ES); o Procurador do MPF (ES), Paulo Henrique Camargos Trazzi; a professora e pesquisadora da GESTA (UFMG), Raquel Oliveira; e a professora e pesquisadora da GEPSA (UFOP), Karine Carneiro.

Já a “Mesa 4” foi composta pela pescadora atingida de Baixo Guandu, Regiane Soares Rosa Lordes; o Cacique Toninho Guarani; ao Procurador Marlon Weichert, (PFDC- Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão/MPF); à professora e pesquisadora Manoela Roland (Homa/UFJF) e à coordenadora da Ong Justiça Global, Melisanda Trentin.

Por Leandro Neves