Nota Conjunta sobre o incêndio no edifício Wilton Paes de Almeida em São Paulo

OCUPAÇÕES COMO REFLEXO DA DESIGUALDADE SÓCIO-ESPACIAL, DA FALÊNCIA DAS POLÍTICAS HABITACIONAIS E DA NÃO IMPLEMENTAÇÃO DOS INSTRUMENTOS DE INDUÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Os núcleos especializados com atuação no direito à moradia das diversas defensorias públicas vêm a público se manifestar sobre todo o contexto social das ocupações, com a finalidade de contribuir de forma construtiva para o debate levantado a partir do triste episódio do incêndio no edifício em São Paulo de 24 andares, localizado no Largo do Paissandu, ocupado por famílias necessitadas, ocorrido na madrugada do dia 01 de maio de 2018.

O nosso país vive uma total omissão dos entes públicos tanto da esfera federal, estadual, quanto municipal na promoção de políticas habitacionais. O déficit habitacional do Brasil, um dos mais elevados do mundo, de acordo com estudos da Fundação João Pinheiro, no ano de 2015, era de 6.186.503 domicílios. Apesar de ser um direito fundamental previsto no art. 6º, da Constituição Federal da República, o direito à moradia está muito longe de ser efetivado.

Ao mesmo tempo, observa-se um grande número de imóveis ociosos, principalmente nos grandes centros urbanos e que não são fiscalizados ou induzidos a cumprir a sua função social, em desrespeito a outro princípio constitucional, o da função social da propriedade. Desde 1988 a Constituição Federal já prevê instrumentos para a fiscalização e indução da função social da propriedade de imóveis particulares, os quais são totalmente ignorados pela grande maioria dos municípios. O resultado disso é que o número de imóveis ociosos é superior ao déficit habitacional. Com base em estudos da Fundação João Pinheiro, em 2014, o déficit habitacional brasileiro era de 6.068 milhões de domicílios, enquanto o número de domicílios vagos era de 7.241 milhões.

Não é novidade que o nosso país sofre de uma profunda desigualdade social, mas ignora-se que esta desigualdade também se reflete na ocupação socioespacial. Com o crescimento descontrolado das cidades, os mais pobres sempre foram expulsos para as periferias. Todavia, com a escassez de terras disponíveis e a valorização dos imóveis pela especulação imobiliária, só resta aos menos favorecidos ocupar áreas de risco, ou de proteção ambiental em condições de extrema vulnerabilidade e insegurança jurídica.

Não podemos nos enganar, a maior porção das cidades brasileiras não foi ocupada de forma planejada e controlada, mas sim por ocupações irregulares que foram se consolidando ao longo do tempo. Viver na cidade formal é um privilégio de poucos. Na realidade, grande parte da população brasileira vive na cidade informal, construída pelas mãos dos próprios moradores e ocupada de forma irregular.

Acontece que a atual falta de imóveis para a expansão das cidades, mesmo que de forma irregular, faz com que as famílias sem acesso à moradia busquem ocupar imóveis ociosos. Devido à desvalorização dos centros urbanos, a grande concentração destes imóveis que não cumprem sua função social se encontra nas áreas centrais das maiores cidades brasileiras.

Os movimentos sociais são grupos informais de pessoas que se organizam com o objetivo de lutar por direitos. Eles são essenciais para todas as conquistas sociais de grande relevância, como o reconhecimento de direitos trabalhistas, direito das mulheres, dos idosos, dos deficientes, das crianças e do direito à moradia. A maioria dos direitos estabelecidos na Constituição Federal da República é fruto da luta dos movimentos sociais.

Diante do cenário de milhares de famílias que em um contexto de crise econômica ficaram desempregadas e perderam a condição de garantir o seu direito à moradia, os movimentos sociais de luta por moradia passam a atuar no sentido de prestar algum apoio às famílias e de organizá-las minimamente na luta diária pela sobrevivência e na garantia de um teto para se abrigarem.

Infelizmente, estas famílias e os movimentos de moradia não encontram nenhum respaldo ou auxílio do poder público, o qual, em regra, ao invés de atuar na defesa dos direitos dos vulneráveis, demonstra-se apenas preocupado em realizar a remoção das pessoas sem disponibilizar minimamente algum meio de garantir a sobrevivência delas. Esse é o motivo das famílias se encontrarem residindo de forma precária em imóveis que não oferecem o conforto e segurança necessários, estando infelizmente passíveis de sofrerem algum acidente.

As famílias que ocupam imóveis ociosos não o fazem por opção, mas como forma de sobrevivência, para garantir minimamente sua dignidade. De acordo com estudo recente realizado pelo Dieese, na Ocupação Povo Sem Medo em São Bernardo do Campo, foi levantado que 73,1% das pessoas da ocupação são economicamente ativas. Trata-se de trabalhadores formais e informais que estão em atividade ou em situação de desemprego, o qual disparou com a recessão econômica. Os ocupantes, assim, não são vagabundos, aproveitadores ou criminosos, mas pessoas comuns, excluídas da cidade formal, pela incapacidade financeira de pagar pelos custos de uma moradia.

O incêndio ocorrido 01/05 na cidade de São Paulo demonstra a completa ausência de políticas habitacionais e a omissão das três esferas de Poder (municipal, estadual e federal), evidenciando a realidade de pessoas que há muito tempo se encontram em situação de invisibilidade social. As ocupações se tornaram pauta nos principais canais da mídia brasileira. Contudo, a culpa pela tragédia de São Paulo ou pela moradia em residências precárias não pode ser atribuída à população que ali reside.

Diante da omissão do poder público na elaboração de políticas habitacionais, ocupar prédios abandonados sem cumprimento de função social é alternativa habitacional viável e legal. A criminalização dos seus ocupantes e dos movimentos sociais alimenta o discurso de ódio sobre a camada mais vulnerável da população  e os movimentos sociais que tanta importância possuem na construção democrática de nosso país. Em sentido totalmente oposto, nesse momento, o que devemos debater é a implementação de políticas habitacionais, o combate à desigualdade socioespacial e a efetivação do princípio da função social da propriedade. Este sim é um debate construtivo e que deve ser travado para proporcionar o desenvolvimento do nosso país.

Assinam o documento:

  • Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo;
  • Núcleo de Prevenção, Mediação e Regularização Fundiária da Defensoria Pública do Estado do Bahia;
  • Defensoria Especializada de Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais de Minas Gerais;
  • Núcleo Aplicado das Minorias e Ações Coletivas, da Defensoria Pública do Estado do Tocantins (NUAMAC);
  • 1ª Defensoria de Direitos Humanos e Tutela Coletiva do Estado do Piauí;
  • Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo;
  • Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro;
  • Núcleo Itinerante das Questões Fundiárias e Urbanísticas da Defensoria Pública do Estado do Paraná;
  • Núcleo Especializado de Defesa do Direito à Habitação, Moradia e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte (NUHAM);
  • Núcleo Cível de Moradia e Defesa Fundiária da Defensoria Pública do Estado do Maranhão;
  • Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul;
  • Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública do Estado do Ceará;
  • Defensoria Regional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União no Espírito Santo (DRDH-ES);
  • Defensoria Regional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União em São Paulo.