Mulheres do Rio Doce: existem, lutam e resistem!

Artigo escrito pela Defensora Pública Mariana Sobral

O rompimento da barragem de Fundão da empresa Samarco, controlada pela VALE e BHP, empreendeu uma transformação na vida de milhares de pessoas.  E dentro dessas pessoas que tiveram suas vidas transformadas, estou eu.  Por isso, esse texto não será jurídico ou técnico.  Minha proposta é fazer um testemunho. Testemunho como Defensora Pública, como mulher, como ser humano.

Meus dias passaram a ser mais longos, o trabalho mais intenso e as experiências profundas. Esse universo, para mim novo, apresentou-me as mulheres do Rio Doce. Análise empírica do desastre remete a uma questão histórica de opressão e injustiças que cercam a figura da mulher. O processo de recuperação e compensação demonstra que o sofrimento acarretado à mulher nessa conjuntura vem em proporção muito maior.

Em contrapartida, as mulheres do Rio Doce são fortes. Participam das reuniões ativamente, ocupando os espaços de fala que historicamente são relegados aos homens. Suas falas soam como gritos necessários para retira-las da invisibilidade na qual foram postas.  Mesmo com a múltipla jornada que possuem, são maioria nas reuniões, ocupam posição de liderança e exercem papel de extrema importância como agentes mobilizadores das atingidas e atingidos, organizando e incentivando a participação de todas e todos na luta pela efetivação dos seus direitos.

Firmes nas falas, mobilizadas pela dor, a mulheres do Rio Doce exigem respeito e tratamento em igualdade de condições em relação aos atingidos. Mostram indignação quando são cadastradas pela Fundação Renova como lavadeiras, porque muitas delas estão, na realidade, inseridas na cadeia de pesca. Não, elas não aceitam que o seu trabalho seja considerado assessório ou complementar ao do seu companheiro. Eu também não aceito. A sociedade não pode aceitar.

O patriarcalismo, enraizado dentro da nossa sociedade, é culpado por uma série de dificuldades que as mulheres enfrentam. No desastre, há luta pela igualdade de gênero de direitos das mulheres, e há também um protagonismo das atingidas, compondo grupos e ocupando papeis de liderança de extrema importância para efetivação dos direitos dos atingidos e atingidas.

Contudo, a prevalência dos homens nos espaços decisórios existentes, tanto em relação às empresas, quanto aos órgãos e instituições públicas, é notória e incomoda bastante a mim e as atingidas, pois enquanto mulher e Defensora Pública, em diversas ocasiões, fui a única figura feminina que ali estava, sendo exposta a falta de respeito ao direito de voz com interferências, até mesmo grosseiras e falas deslegitimadoras dos argumentos por mim trazidos pelo fato de ser mulher.

Dentro de um Estado com altos índices de violência doméstica, as mulheres do Rio Doce ainda enfrentam aumento deste tipo de opressão, principalmente, em razão dos reflexos psicológicos do desastre. Os homens, crescidos dentro desta cultura machista agressiva, perderam a sensação de utilidade que traz o trabalho. O ócio tomou conta das comunidades e o álcool e as drogas estão sendo a válvula de escape para muitos atingidos. E em quem recai essa fúria? Na mulher que resiste às violências para “manter o que restou do seu lar”.

As famílias que possuíam ligação com Rio Doce terão que se reinventar e, dentro dessas mudanças que ocorrem em uma situação desastre, vislumbra-se oportunidade de reduzir a desigualdade de gênero enraizada em nossa sociedade. Essa mudança de postura deve vir de uma união de esforços. Empresas causadoras dos danos, Função Renova, órgãos públicos, Defensorias Públicas, Ministérios Públicos, Poder Judiciário, atingidos, atingidas, jornalistas. Todas e todos em uma corrente para que haja nenhum direito a menos a estas mulheres e que a atingida seja respeitada enquanto sujeito de direitos autônomos em igualdade de condições com qualquer atingido pelo rompimento da barragem de Fundão. E se isto ocorrer, quem sabe, numa visão quase utópica, mas otimista, este não será o maior legado do desastre.